Tecnopólio - I

Tecnopólio - I

22 janeiro 2025
Neil Postman

Neil Postman

Anotações da leitura de Tecnopólio: A Rendição da Cultura à Tecnologia, 1992, de Neil Postman.

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É de se esperar que os vencedores incentivem os perdedores a se entusiasmarem com a tecnologia de computadores. Esse é o jeito dos vencedores, e então eles às vezes dizem aos perdedores que com computadores pessoais a pessoa média pode controlar gastos de forma mais ordenada, manter um melhor controle das receitas e fazer listas de compras mais lógicas. Eles também dizem -lhes que suas vidas serão conduzidas de forma mais eficiente. Mas discretamente eles negligenciam dizer de qual ponto de vista a eficiência é garantida ou quais podem ser seus custos. Se os perdedores ficarem céticos, os vencedores deslumbram-lhes com os feitos maravilhosos dos computadores, quase todos de relevância apenas marginal para a qualidade de vida dos perdedores, mas que são mesmo assim impressionantes. Eventualmente, os perdedores sucumbem, em parte porque eles acreditam, como Thamus profetizou, que o conhecimento especializado dos mestres de uma nova tecnologia é uma forma de sabedoria. Os mestres passam a acreditar nisso também, como Thamus também profetizou. O resultado é que certas questões não surgem. Por exemplo, a quem a tecnologia dará maior poder e liberdade? E quem terá o poder e a liberdade reduzidos?
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[…] em culturas que têm um ethos democrático, tradições relativamente fracas e uma alta receptividade a novas tecnologias, todos tendem a se entusiasmar com mudanças tecnológicas, acreditando que seus benefícios acabarão se espalhando uniformemente entre toda a população. Especialmente nos Estados Unidos, onde a ânsia pelo que é novo não tem limites, encontramos essa convicção infantil mais amplamente difundida. De fato, na América, a mudança social de qualquer tipo raramente é vista como resultando em vencedores e perdedores, uma condição que decorre em parte do otimismo muito documentado dos americanos. Quanto à mudança trazida pela tecnologia, esse otimismo nativo é explorado por empreendedores, que trabalham árduamente para infundir na população uma esperança improvável, pois sabem que é economicamente imprudente revelar o preço a ser pago pela mudança tecnológica. Pode-se dizer, então, que, se há uma conspiração de qualquer tipo, é a de uma cultura conspirando contra si mesma.

Além disso, e mais importante, nem sempre fica claro, pelo menos nos estágios iniciais da intrusão de uma tecnologia em uma cultura, quem ganhará mais com isso e quem perderá mais. Isso ocorre porque as mudanças trazidas pela tecnologia são sutis, se não completamente misteriosas, alguém pode até dizer extremamente imprevisíveis. Entre as mais imprevisíveis estão aquelas que podem ser rotuladas como ideológicas. Esse é o tipo de mudança que Thamus tinha em mente quando alertou que os escritores passarão a confiar em sinais externos em vez de seus próprios recursos internos, e que eles receberão quantidades de informação sem instruções adequadas. Ele quis dizer que as novas tecnologias mudam o que queremos dizer com “saber” e “verdade”; elas alteram aqueles hábitos de pensamento profundamente arraigados que dão a uma cultura seu senso de como o mundo é — um senso de qual é a ordem natural das coisas, do que é razoável, do que é necessário, do que é inevitável, do que é real. Como tais mudanças são expressas em significados alterados de palavras antigas, vou adiar para discutir mais tarde a enorme transformação ideológica que está ocorrendo nos Estados Unidos. Aqui, eu gostaria de dar apenas um exemplo de como a tecnologia cria novas concepções do que é real e, no processo, enfraquece concepções mais antigas. Refiro-me à prática aparentemente inofensiva de atribuir notas ou classificações às respostas que os alunos dão nos exames. Este procedimento parece tão natural para a maioria de nós que mal temos consciência de sua importância. Podemos até achar difícil imaginar que o número ou a letra sejam uma ferramenta ou, se preferir, uma tecnologia; menos ainda que, quando usamos essa tecnologia para julgar o comportamento de alguém, fizemos algo peculiar. Na verdade, o primeira registro de classificação de trabalhos de alunos ocorreu na Universidade de Cambridge em 1792 por sugestão de um tutor chamado William Farish.3 Ninguém sabe muito sobre William Farish; não mais do que um punhado já ouviu falar dele. E ainda assim sua ideia de que um valor quantitativo deveria ser atribuído aos pensamentos humanos foi um grande passo em direção à construção de um conceito matemático da realidade. Se um número pode ser dado à qualidade de um pensamento, então um número pode ser dado às qualidades de misericórdia, amor, ódio, beleza, criatividade, inteligência, até mesmo a própria sanidade. Quando Galileu disse que a linguagem da natureza é escrita em matemática, ele não se referia aos sentimentos humanos ou realizações ou percepções. Mas a maioria de nós agora está inclinada a abarcá-los à matematização. Nossos psicólogos, sociólogos e educadores acham totalmente impossível fazer seu trabalho sem números. Eles acreditam que sem números eles não podem adquirir ou expressar conhecimento autêntico. Não vou argumentar aqui que esta é uma ideia estúpida ou perigosa, apenas que é peculiar. O que é ainda mais peculiar é que muitos de nós não acham a ideia peculiar. Dizer que alguém deveria fazer um trabalho melhor porque tem um QI de 134, ou que alguém é 7,2 em uma escala de sensibilidade, ou que o ensaio desse homem sobre a ascensão do capitalismo é um A − e o daquele homem é um C+ − teria soado como um jargão para Galileu ou Shakespeare ou Thomas Jefferson. Se faz sentido para nós, é porque nossas mentes foram condicionadas pela tecnologia dos números para que vejamos o mundo de forma diferente do que eles viam. Nossa compreensão do que é real é diferente. O que é outra maneira de dizer que embutido em cada ferramenta está um viés ideológico, uma predisposição para construir o mundo como uma coisa em vez de outra, para valorizar uma coisa em detrimento de outra, para amplificar um sentido, habilidade ou atitude em detrimento de outro. Foi isso que Marshall McLuhan quis dizer com seu famoso aforismo “O meio é a mensagem”. Foi isso que Marx quis dizer quando disse: “A tecnologia revela o modo do homem lidar com a natureza” e cria as “condições de intercurso” pelas quais nos relacionamos uns com os outros. Foi o que Wittgenstein quis dizer quando, ao se referir à nossa mais fundamental tecnologia, disse que a linguagem não é meramente um veículo de pensamento, mas também o condutor. E é isso que Thamus queria que o inventor Theuth visse. Esta é, em suma, uma antiga e persistente sabedoria, talvez mais simplesmente expressa no velho ditado de que, para um homem com um martelo, tudo parece um prego. Sem ser muito literal, podemos estender o truísmo: para um homem com um lápis, tudo parece uma lista. Para um homem com uma câmera, tudo parece uma imagem. Para um homem com um computador, tudo parece dados. E para um homem com uma folha de notas, tudo parece um número.

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Nos Estados Unidos, podemos ver tais colisões [NT.: novas tecnologias comptetindo com as velhas] em todos os lugares — na política, na religião, no comércio — mas as vemos mais claramente nas escolas, onde duas grandes tecnologias se confrontam intransigentemente pelo controle das mentes dos alunos. Por um lado, há o mundo da palavra impressa com sua ênfase na lógica, sequência, história, exposição, objetividade, distanciamento e disciplina. Por outro, há o mundo da televisão com sua ênfase em imagens, narrativa, presença, simultaneidade, intimidade, gratificação imediata, e resposta emocional rápida. As crianças vêm para a escola tendo sido profundamente condicionadas pelos vieses da televisão. Lá, elas encontram o mundo da palavra impressa. Uma espécie de batalha psíquica acontece, e há muitas vítimas — crianças que não conseguem aprender a ler ou não querem, crianças que não conseguem organizar seus pensamentos em uma estrutura lógica, mesmo em um simples parágrafo, crianças que não conseguem assistir a palestras ou explicações orais por mais do que alguns minutos de cada vez. Elas fracassam, mas não porque elas são estúpidas. Elas fracassam porque há uma guerra de mídia acontecendo, e elas estão do lado errado — pelo menos por enquanto. Quem sabe como serão as escolas daqui a vinte e cinco anos? Ou cinquenta? Com o tempo, o tipo de aluno que atualmente é um fracasso pode ser considerado um sucesso. O tipo que agora é bem-sucedido pode ser considerado um aluno deficiente — lento para responder, muito distante, sem emoção, inadequado para criar imagens mentais da realidade.

Ao introduzir o computador pessoal na sala de aula, estaremos quebrando uma trégua de quatrocentos anos entre a sociabilidade e a abertura fomentados pela oralidade e a introspecção e o isolamento fomentados pela palavra impressa. A oralidade enfatiza a aprendizagem em grupo, a cooperação e um senso de responsabilidade social, que é o contexto dentro do qual Thamus acreditava que a instrução adequada e o conhecimento real devem ser comunicados. A impressão enfatiza a aprendizagem individualizada, a competição e a autonomia pessoal. Ao longo de quatro séculos, os professores, ao enfatizar o impresso, permitiram que a oralidade ocupasse seu lugar na sala de aula e, portanto, alcançaram um tipo de paz pedagógica entre essas duas formas de aprendizagem, para que o que é valioso em cada possa ser maximizado. Agora vem o computador, carregando novamente a bandeira da aprendizagem privada e da resolução individual de problemas. O uso generalizado de computadores na sala de aula derrotará de uma vez por todas as reivindicações de discurso comunitário? O computador elevará o egocentrismo ao status de uma virtude?

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