Iniciando a Guerra Comercial: A Melhor Coisa que Trump Fez à China
Recentemente, como um dos jovens acadêmicos emergentes da China, Mao Keji concedeu uma entrevista ao canal Sinification, na qual discutiu Trump, a China, a Índia e o mundo em 2049. Seguem alguns trechos destacados.

Mao Keji, jovem acadêmico emergente da China
Observando o Retorno de Trump: Os Perigos da Mudança Radical
Pergunta 1:
Você tem atuado como pesquisador visitante na Universidade de Harvard nos últimos seis meses e, por isso, presenciou de perto o retorno de Trump ao poder. Qual foi sua reação à sua reeleição e como você avaliaria as primeiras semanas do novo mandato?
Mao Keji:
Não tenho uma opinião muito intensa sobre a reeleição de Trump – não diria que o adoro nem o desprezo. Dito isso, levo uma impressão geral de que, de certa forma, a vitória de Trump representou uma espécie de “correção de rumo” na política americana. Em outras palavras, os problemas da América – sejam eles sociais, econômicos ou políticos – se enraizaram tanto que não podiam mais ser solucionados com a “política de sempre”. Por isso, os eleitores optaram por Trump, um político nada convencional, para implementar reformas ousadas e drásticas. Para ser sincero, como observador chinês, muitas das atitudes de Trump e Musk nas últimas semanas realmente me surpreenderam. Pode-se dizer que foi uma verdadeira revelação para mim. Por exemplo, Trump manifestou abertamente seu desejo de que o Canadá se tornasse o 51º estado dos Estados Unidos e chegou a sugerir a ideia de anexar a Groenlândia. No entanto, há apenas alguns meses, a administração Biden acusava a China de minar as regras da ordem internacional vigente. É impressionante como as normas, antes tidas como sagradas na política internacional, podem ser descartadas da noite para o dia e substituídas pela lei do mais forte. Sinceramente, perdi muito respeito pelos EUA por conta dessas brincadeiras políticas infantis. Além disso, a iniciativa de Musk de reformar o governo federal por meio do DOGE, com o apoio de Trump, me remete às ações de dois líderes soviéticos. Primeiro, Khrushchev, que, em seu discurso secreto no 20º Congresso do Partido Comunista Soviético, expôs muitas das obscuras ações de Stalin. Embora isso tenha fortalecido sua posição na era pós-Stalin, prejudicou de forma irreparável a autoridade interna do Partido Soviético e sua reputação moral no cenário internacional – sendo a cisão sino-soviética o desdobramento mais direto. Da mesma forma, os esforços incansáveis de Musk e Trump para revelar o chamado “deep state” podem até favorecer a nova administração, mas os danos que estão causando às instituições e à credibilidade moral dos EUA são irreversíveis e incalculáveis, podendo ter consequências assustadoras. Em segundo lugar, Gorbachev, que acreditava que a União Soviética estava em declínio irreversível, promoveu reformas ousadas com base em seu “novo pensamento”. Seu objetivo era corrigir os problemas por meio dessas reformas para colocar a União de volta nos trilhos. Contudo, devido à enorme dimensão das mudanças e à preparação insuficiente, acabou, de forma não intencional, provocando o colapso da URSS. De maneira semelhante, ao identificar os problemas dos EUA, Trump também deseja promover reformas ousadas e radicais, mas sua abordagem extremada tende a gerar conflitos internos ou até mesmo uma guerra civil. Em resumo, tenho sérias dúvidas quanto a essas reformas radicais e questiono se elas são realmente pautadas pelos interesses dos EUA ou apenas pelo interesse próprio desses indivíduos. Mao Keji, jovem estudioso emergente da China
Dissuadindo Trump: Enfrentando com Força
Pergunta 2:
Suponha que você se depare com alguém como Trump. Como você responderia às suas ameaças e tarifas? De que forma o faria recuar em suas táticas de pressão, sem abrir mão de conquistar seu respeito?
Mao Keji:
Trump é, por natureza, um empresário – acostumado a análises de custo-benefício, mas menos atento ao planejamento estratégico de longo prazo. Por isso, acredito que a melhor estratégia para responder à sua pressão é demonstrar que você tem tanto a capacidade quanto a disposição de impor custos a ele. Ao mesmo tempo, mostrar fraqueza ou ansiedade diante dele não gera simpatia; pelo contrário, só tende a convidar a uma agressão ainda maior. Infelizmente, Canadá, Dinamarca, Alemanha e Ucrânia já comprovaram esse ponto. Como aliados demasiadamente subservientes que sempre seguiram a liderança de Washington, confiaram demais nos EUA e nunca desenvolveram uma estratégia para se defender ou resistir. Diante das ameaças de Trump, ficaram sem alternativa e, no final das contas, sofreram golpes humilhantes. Para mim, isso é uma lição de realismo: render-se só traz mais humilhação; somente resistindo até o fim é que se pode reverter a situação. Portanto, mantendo o respeito e a cortesia em relação a ele, eu mostraria a firme determinação da China e sua capacidade de retaliar contra os EUA. Assim, ele passaria a tomar decisões ciente de que os custos de pressionar a China superam em muito os benefícios, o que o desmotivaria a adotar comportamentos arriscados.
O Retorno de Trump: Consenso e Discordância na China
Pergunta 3:
A Sinificação [Nota: publicação sobre a China], como você sabe, foca na elite intelectual da China e em suas visões de mundo. Como os estudiosos e analistas chineses – especialmente os da sua geração “pós-90” – reagiram ao retorno de Trump? Quais os principais pontos de concordância e divergência que você observou até o momento?
Mao Keji:
Muitos de nós, inclusive eu, não ficamos surpresos com o retorno de Trump. Na verdade, parecia até inevitável: se não fosse por ele, alguém semelhante teria surgido. Isso porque todos acreditamos que muitas das questões internas dos EUA se enraizaram demais para serem solucionadas pelos métodos tradicionais. Enquanto isso, a administração Biden demonstrou que nem o establishment democrata nem o republicano conseguem resolver esses problemas por meio dos processos políticos convencionais. Entre os jovens intelectuais chineses, há consenso de que os problemas internos dos EUA estão profundamente enraizados e são difíceis de resolver. No entanto, há divergências quanto à capacidade das reformas de Trump de salvar a América. Os otimistas afirmam que Trump e Musk reuniram um robusto conjunto de reformas, respaldado por uma determinação firme e um apoio popular sem precedentes. Com o impulso extra da inteligência artificial, há uma chance real de que a América seja salva por meio de reformas radicais, [afirmam]. Por outro lado, os pessimistas sustentam que o poder global dos EUA está fundamentalmente atrelado ao sistema internacional – do status do dólar como moeda dominante à capacidade de atrair talentos do mundo inteiro e de absorver capital global. Assim, se Trump optasse por um isolacionismo rigoroso e despojasse os EUA de sua hegemonia extrativa de recursos, [os pessimistas acreditam que] o país enfrentaria um declínio abrupto por não conseguir se sustentar, possivelmente culminando numa implosão ao estilo soviético. Há ainda uma citação da Trilogia do Problema dos Três Corpos1 que eu realmente aprecio: “A fraqueza e a ignorância não são barreiras para a sobrevivência, mas a arrogância é.” Mesmo que os Estados Unidos pareçam estar em declínio, eles continuam, por todos os aspectos, sendo a principal potência mundial. Afinal, o fato de um reformador não convencional como Trump ter surgido sugere que o sistema americano possui, de fato, uma forte capacidade de autocorreção. Essa é, de qualquer forma, a minha visão. Ao mesmo tempo, presto atenção especial às forças tecnológicas por trás de Trump, pois elas podem provocar mudanças novas e inesperadas. Prefiro superestimar [o impacto de] suas reformas do que correr o risco de subestimá-las. Muitos think tanks e veículos midiáticos do establishment norte-americano demonstram uma arrogância real, fundamentada na crença de que seus valores são superiores. Em contrapartida, às vezes sinto que as perspectivas de Trump, Vance e outros são mais realistas e merecem maior atenção.
O Impacto de Trump na China: Ameaça ou Oportunidade?
Pergunta 4:
Alguns estudiosos chineses enxergam o retorno de Trump ao poder como algo prejudicial aos interesses nacionais da China, enquanto outros o veem como uma oportunidade. Qual é a sua opinião?
Mao Keji:
O segundo mandato de Trump mal começou, e ninguém sabe o que virá a seguir. Embora ele não tenha se dedicado intensamente a criticar a China recentemente, assim que resolver a questão Rússia-Ucrânia e desmantelar o Deep State, terá as mãos livres para lidar com a China. No seu primeiro mandato, Trump seguiu um roteiro semelhante. Por isso, muitos chineses que enxergam sua reeleição como algo benéfico para a China podem estar comemorando antes da hora. Para ser sincero, não me preocupo muito se Trump trará benefícios ou prejuízos para a China. Ele é apenas uma variável marginal para o nosso país. A China é imensa, com uma grande população e uma base industrial robusta. Em muitos casos, enquanto seus assuntos internos forem bem administrados, não há razão para temer um cenário internacional instável. Sob uma perspectiva dialética, o que Trump fez de mais vantajoso para a China no primeiro mandato foi desencadear a guerra comercial e tecnológica. Esse movimento serviu como um alerta, fazendo com que a China percebesse a urgência de desenvolver rotas tecnológicas independentes e controláveis e de acelerar sua transição para tecnologias inteligentes. Sem a política de pressão extrema de Trump, nenhum órgão governamental chinês ou empresa nacional teria conseguido impulsionar a transição para alternativas domésticas. Além de ser custoso, o resultado seria extremamente incerto. Por isso, a China, neste momento crucial, poderia até estar negligenciando o desenvolvimento de setores essenciais e acumulando riscos com consequências potencialmente irreversíveis e catastróficas. Muitas iniciativas que, à primeira vista, parecem benéficas para a China podem não ter um impacto tão grande, enquanto outras, que parecem prejudiciais, podem acabar estimulando um crescimento poderoso. No fim das contas, se algo traz benefícios ou prejuízos depende de quão bem a China consegue absorver os choques externos. Em última análise, fortalecer nossas capacidades e focar nas prioridades internas é o mais importante – não há motivo para se prender à figura de Trump.
O Mundo em 2029 e 2049
Pergunta 5:
Olhando para o futuro, como você imagina que os EUA e o mundo estarão daqui a quatro anos? E em 2049?
Mao Keji:
Prever o que acontecerá nos quatro anos do segundo mandato de Trump é extremamente difícil, mas, por enquanto, uma coisa parece certa: a influência global dos EUA diminuirá significativamente. Essa é, talvez, a tendência mais marcante que se destaca até o momento. Se a política de Trump continuar nesse ritmo, ao final dos quatro anos, o sistema de alianças dos EUA, o status do dólar como moeda global, a influência americana sobre instituições multilaterais, sua presença militar pelo mundo e até mesmo seu domínio ideológico e midiático serão drasticamente reduzidos. Essa é uma escolha deliberada da administração Trump, provavelmente baseada na ideia de que os custos de manter esses arranjos globais superam os benefícios para os EUA. Ao mesmo tempo, o recuo de Trump pode ser calculado, resgatando, de forma efetiva, a doutrina das esferas de influência do século XIX. Isso significa um retorno a uma época semelhante à dos Estados Combatentes, onde as grandes potências podiam simplesmente traçar círculos em um mapa para definir o destino de nações menores. Um mundo assim, onde impera a lei do mais forte, pode parecer inimaginável. Contudo, o incentivo de Trump à autonomia defensiva da Europa, sua aceitação tácita das ações da Rússia, suas ambições territoriais em relação ao Canadá e à Groenlândia, e até mesmo seu comentário direto de que “deixaria Bangladesh para o primeiro-ministro Modi”, sugerem uma tendência crescente rumo a um mundo dividido em esferas de influência. Isso é algo que não se pode ignorar. No cenário interno, os próximos quatro anos nos EUA são igualmente difíceis de prever. Como já mencionei, embora eu acredite que Musk, com o apoio de Trump, possa efetivamente implementar algumas reformas importantes, continuo bastante cético quanto à abordagem radical deles. Isso até me lembra um pouco a Revolução Cultural da China, em que um pequeno grupo de excluídos políticos, com a aprovação tácita de seus líderes, conseguiu acesso ao centro do poder e está aproveitando o descontentamento social generalizado para mobilizar um grande número de pessoas comuns – especialmente aquelas das camadas mais baixas da sociedade e os jovens com pouca experiência – para lançar um ataque feroz ao sistema vigente. No momento, parece que grande parte do que o movimento DOGE vem fazendo – expondo escândalos chocantes nas redes sociais – tem mais a ver com a manutenção da “legitimidade revolucionária” do que com uma busca sincera por reformas, criando, assim, um ciclo de fervor que se auto-reforça e se intensifica. À medida que Trump continua a usar o ataque ao Deep State como pretexto para desmantelar o governo federal, um número cada vez maior de pessoas pode achar a situação insuportável e se unir a uma oposição feroz contra ele. Isso pode gerar um nível de divisão sem precedentes na sociedade americana. Não sei como tudo isso vai se resolver, mas as fissuras sociais, aliadas à turbulência econômica e às crescentes pressões internacionais, certamente representam um desafio complicado. Quanto a como imagino o mundo em 2049, daqui a uma geração, confesso que nunca havia pensado muito nisso. Não sou muito bom em imaginar cenários tão distantes. Contudo, já que você perguntou, farei o meu melhor para responder. A menos que ocorra um desastre geopolítico – como uma guerra nuclear – ou um cenário digno de ficção científica, como uma revolta de robôs, e supondo que as tendências atuais se mantenham de forma linear, é bastante provável que, até 2049, a China tenha ultrapassado os Estados Unidos como a maior economia do mundo. De agora até lá, se a China continuar a administrar bem seus próprios assuntos, ela naturalmente dará esse salto devido ao seu tamanho colossal, superando as complicadas “contradições” estruturais que hoje se manifestam entre os EUA e a China. [Mas] isso não deve ser visto como uma vitória geopolítica unilateral da China sobre os Estados Unidos. Como será a China em 2049? Imagine um país com mais de um bilhão de pessoas (tomara que a população ainda esteja nessa casa de números!), completamente industrializado e automatizado, vivendo em um sistema socialista que prioriza o interesse público. Nesse ponto, a China poderá se tornar a primeira nação verdadeiramente avançada dentro do socialismo, cumprindo a grande profecia de Karl Marx de dois séculos atrás. Aguardo com entusiasmo ver a China alcançar novas inovações institucionais e avanços materiais, contribuindo para o progresso da civilização humana e tornando o mundo um lugar melhor.
Índia, China e os EUA: Um Novo Capítulo?
Pergunta 6:
Por fim, vamos voltar à sua área de especialização: a Índia e as relações sino-indianas. Poderia nos contar um pouco mais sobre sua pesquisa atual? Deixando de lado quaisquer expectativas, como você enxerga a evolução das relações entre os EUA e a Índia, bem como entre a China e a Índia, durante o governo de Trump?
Mao Keji:
Nos últimos meses, tenho pesquisado a respeito da industrialização e modernização da Índia, no Instituto Harvard-Yenching. A Índia é o único outro país no mundo – além da China – com uma população que ultrapassa um bilhão. Contudo, sem industrialização e modernização, ela não conseguirá converter seu imenso potencial em poder real. Por isso, acredito que, embora a industrialização e a modernização da Índia possam parecer questões relacionadas ao desenvolvimento, elas são, na realidade, grandes temas geopolíticos com o potencial de remodelar a ordem mundial. Se algum dia houver um evento capaz de [fundamentalmente] alterar essa ordem, creio que seria a ascensão da Índia. Nesse sentido, tenho me dedicado a uma pesquisa aprofundada, focando principalmente nos obstáculos e desafios que a Índia enfrenta em seu desenvolvimento e avaliando se o governo indiano conseguirá superá-los para impulsionar o crescimento econômico do país. Quanto a como prevejo a evolução das relações EUA-Índia e China-Índia sob o governo de Trump, tenho algumas observações e reflexões recentes [para compartilhar]. Em termos simples, acredito que as relações entre os EUA e a Índia tendem a esfriar durante o mandato de Trump. A razão é simples: a administração Trump não enfatiza a estratégia indo-pacífica [dos EUA] da mesma forma que a administração Biden, tampouco busca, de maneira destacada, utilizar a Índia para contrabalançar a China. Assim, para Trump, a Índia não possui um valor estratégico particularmente elevado. A recente visita de Modi aos EUA deixou claro que Trump jamais se satisfaria com a retórica vaga de uma amizade entre os dois países; ao contrário, ele espera extrair ganhos financeiros concretos da Índia por meio da exportação de armas, energia e tecnologia. Há muito tempo, a Índia tenta aproveitar seu futuro status de grande potência e seu potencial estratégico para contrabalançar a China, em troca de recursos estratégicos gratuitos. Porém, se Trump decidisse estabelecer um preço explícito para esses recursos e forçasse a Índia a aceitar todas as condições, Modi certamente não os acataria de forma submissa. Isso explica por que os círculos estratégicos e acadêmicos da Índia têm manifestado, recentemente, críticas crescentes a Modi por se alinhar excessivamente com os EUA, em detrimento da autonomia estratégica do país. Enquanto isso, outros – depois de muitos anos – já começam a discutir a ideia de retomar um engajamento mais profundo com a China. Afinal, mesmo que a Índia não seja genuinamente amiga da China, a mera aparência de uma amizade sino-indiana pode ajudar a elevar seu valor aos olhos dos EUA. Sob essa perspectiva, acredito que há uma real possibilidade de um descongelamento nas relações entre a China e a Índia.
Fonte: https://thechinaacademy.org/starting-the-trade-war-the-best-thing-trump-did-to-china/