O Modelo Multissetorial, o Neoliberalismo e a Governança Global (da Internet)

O Modelo Multissetorial, o Neoliberalismo e a Governança Global (da Internet)

27 agosto 2025
William Kentridge, Small Atlas Procession II

William Kentridge, Small Atlas Procession II

O Modelo Multissetorial, o Neoliberalismo e a Governança Global (da Internet)

Publicado em 26/03/2014

Comentei em outro lugar sobre o surgimento repentino e a inserção do “modelo multissetorial” (aqui também denominado multissetorialismo) nas discussões sobre Governança da Internet há cerca de 2 ou 3 anos. O termo, é claro, existe há muito mais tempo e até foi usado no âmbito da Internet para descrever (mais ou menos apropriadamente) os processos decisórios de vários dos órgãos técnicos da Internet (IETF, IAB, ICANN).

O que é novo e um tanto surpreendente é a pressão intensa do governo dos EUA e de seus aliados e acólitos entre os participantes corporativos, técnicos e da sociedade civil nas discussões sobre Governança da Internet para estender o uso das versões adaptadas localmente do modelo multissetorial. A intenção é passar do uso do modelo multissetorial em áreas bastante restritas e técnicas, onde ele obteve um grau considerável de sucesso, para torná-lo a base fundamental e, efetivamente, única sobre a qual tais discussões de Governança da Internet devem ser permitidas (conforme a declaração do governo dos EUA sobre a transferência da função de gestão do DNS). Notavelmente, também, o “multissetorialismo” parece ter substituído a “Liberdade da Internet” como o meme mobilizador preferido da Internet (a “Liberdade da Internet” ficou um tanto desacreditada depois das revelações de Snowden, reinterpretada como “liberdade do governo dos EUA – de vigiar, sabotar e subverter à vontade via Internet”).

Em meio a esses desenvolvimentos, houve uma mudança sutil na apresentação do multissetorialismo, inicialmente como uma estrutura para processos de consulta em Governança da Internet, para agora apresentá-lo como o modelo necessário para a tomada de decisões em Governança da Internet. Além disso, entende-se que essa nova aplicação do multissetorialismo ocorreria não apenas dentro das áreas bastante restritas da gestão técnica das funções da Internet, mas também e fundamentalmente dentro de áreas mais amplas de políticas públicas, onde a significância da Internet é global e se expande rapidamente.

Mais importante, o modelo multissetorial está sendo apresentado como o modelo que substituiria os processos agora “ultrapassados” e “obsoletos” de tomada de decisão democrática nessas esferas – na terminologia de alguns proponentes, fornecendo um modelo “pós-democrático aprimorado” para a formulação de políticas globais (da Internet).

Então, o que exatamente é o “modelo multissetorial”?

Bem, isso não é muito claro e ninguém (menos que todos, o Departamento de Estado dos EUA, que invocou o modelo 12 vezes em sua apresentação de uma página para a reunião do NetMundial no Brasil) forneceu até agora mais do que referências de manchete e de elevator pitch ao “modelo” multissetorial ou exemplos de como ele seria (uma tarefa difícil, se não impossível, dada a necessidade de contextualizar instanciações individuais multissetorialistas – processos e práticas).

Mas seja o que for, um elemento-chave do multissetorialismo é que as decisões políticas (e outras) serão tomadas por todas as “partes interessadas” relevantes. Isso incluirá, é claro, por exemplo, as grandes corporações da Internet, que promovem seus “interesses” e fazem políticas para a Internet por meio de algum tipo de processo de consenso onde todas as partes interessadas têm uma voz “igual” e onde regras que governam coisas como procedimentos operacionais, conflito de interesses, modos e estruturas de governança interna, regras de participação, etc, etc, todas parecem ser inventadas conforme avançam.

Claramente, as grandes corporações da Internet, o governo dos EUA e seus aliados nas comunidades técnica e da sociedade civil estão bastante entusiasmados – trabalhar em conjunto em coisas como estruturas, princípios e regras (ou não) vinculados à Internet para privacidade e segurança, tributação, direitos autorais, privacidade, etc é algo muito empolgante. Se o resultado, de alguma forma, apoia o interesse público amplo ou uma Internet para o Bem Comum, ou qualquer coisa além de um conjunto de regras e práticas para promover os interesses e benefícios daqueles que já estão obtendo os maiores retornos de seu atual “interesse” na Internet, bem, isso já não é tão claro.

O que eu acho que é claro, porém, é que o modelo multissetorial que está sendo apresentado é, de fato, a transformação do modelo econômico neoliberal – que resultou em tanta devastação e tragédia humana em todo o mundo – em uma nova forma de governança “pós-democrática”. (Esta conexão entre um modelo econômico neoliberal e a governança multissetorial é apresentada mais claramente em um documento publicado pelo Aspen Institute com numerosos coautores e colaboradores luminares da Internet – “Rumo a uma Única Economia Digital Global” (Vídeo/PDF). Este artigo argumenta a favor, esboça e celebra a dominância da economia da Internet pelos EUA, corporações dos EUA e aliados selecionados da OCDE, e fornece um plano de ação para a implementação do modelo multissetorial como a estrutura de governança de apoio para a extensão dessa atual dominância tecnológica e comercial como base para criar a “única economia digital global”.) (NOTA do blogueiro: esse relatório é produzido num momento histórico em que o Brasil e demais países dos BRICS defendiam a idéia de uma Internet regulada por organismos internacionais, por exemplo, ver a Declaração de Ufá)

Assim, por exemplo, embora existam oportunidades claras e bem-reconhecidas de participação de partes interessadas do setor privado, partes interessadas técnicas e partes interessadas da sociedade civil nos fóruns de políticas da Internet (mercado), não há uma “parte interessada” óbvia no processo com a tarefa de representar o “interesse público”. Assim, ninguém tem a responsabilidade de garantir que os processos decisórios sejam justos e não sejam subvertidos ou capturados e que a gama de participantes seja suficientemente inclusiva para garantir um resultado legítimo e socialmente equitativo. Nem no modelo multissetorial, como no modelo econômico neoliberal, existe qualquer quadro regulatório externo para proteger o interesse geral ou público em meio aos resultados e interações “liberalizadas” (ou seja, não reguladas) resultantes das interações entre interesses setoriais individuais.

Da mesma forma, enquanto em um processo democrático normal (ou em um mercado não “liberalizado”) a estrutura subjacente e as expectativas de participação seriam a de que os atores estariam perseguindo o “interesse público” (com, é claro, diferentes interpretações do que isso possa significar) e, além disso, haveria algum contrato social básico para fornecer uma “rede de proteção social” para todos os indivíduos e grupos, e particularmente para os menos capazes de defender seus próprios interesses. No modelo multissetorial, não há promoção do interesse público; em vez disso, de alguma forma, o interesse público é um subproduto/resultado (mágico) dos processos de confluência (ou consenso) de cada parte interessada individual perseguindo seu interesse individual particular (interesse). O governo pode ou não ser uma parte interessada (igual) neste modelo, mas, em qualquer caso, a intenção geral é remover completamente, se possível, o governo (mesmo como protetor de direitos e garantidor de processos e resultados equitativos).

Isto, é claro, tem que ser visto como uma “privatização” geral da governança, onde, por exemplo, as grandes corporações da Internet têm pé de igualdade na determinação de questões de governança da Internet em áreas como regulação (onde tal é permitido ocorrer) ao lado de outras partes interessadas. Neste modelo, não há espaço para a Internet como um bem comum; ou como um espaço ou recurso igualmente disponível para todos como uma ferramenta para o melhoramento econômico e social geral (incluindo, por exemplo, para os marginalizados, os pobres, os de Países Menos Desenvolvidos e até mesmo aqueles que atualmente não são “usuários” da Internet). As “partes interessadas” fazem e até aplicam as regras, e qualquer um que não seja ou não possa ser uma “parte interessada” – bem, azar o deles.

Da mesma forma, há uma recusa em aceitar até mesmo a possibilidade de um quadro regulatório para a Internet (o argumento articulado com mais força no decorrer da campanha Internet Freedom) ou que a Internet possa ser de importância suficiente como uma plataforma fundamental para a ação humana neste período, a ponto de não poder mais ser vista como um domínio de ação e controle exclusivamente privatizados.

Os efeitos danosos agora altamente visíveis do neoliberalismo através de

  • sua promoção da privatização de serviços públicos como educação e saúde em Países Menos Desenvolvidos (e Desenvolvidos), com os consequentes aumentos significativos na não escolarização e deterioração na saúde entre os pobres, marginalizados e rurais;
  • o enfraquecimento do contrato social e das redes de proteção social em Países Desenvolvidos, com os aumentos associados na pobreza infantil, falta de moradia e fome;
  • a promulgação e ampla imposição do “Consenso de Washington” e regimes de austeridade impostos externamente, dos quais muitos países ao redor do mundo só agora estão se recuperando (e que o próprio Fundo Monetário Internacional (FMI) reconheceu como um erro grave e altamente destrutivo);
  • as ações do FMI e do Banco Mundial em insistir na privatização e desregulamentação e, assim, dizimar inúmeras empresas locais em favor de multinacionais; e
  • de modo geral, ao fornecer os condutores ideológicos (e modelos) para um significativo ataque social e econômico global aos pobres e vulneráveis, são muito bem conhecidos.

Este é o modo de governança que, através do multissetorialismo, sua contraparte na governança global (da Internet) e além, deve ser o modelo básico de governança para a Internet promovido, sem surpresa, pelo setor corporativo e pelo Governo dos EUA, mas igualmente e surpreendentemente por amplos elementos da sociedade civil e da comunidade técnica também.

O significado real e o alvo final para esta neoliberalização da governança não estão, é claro, com questões técnicas restritas de Governança da Internet, mas sim com questões como a tributação do comércio habilitado pela Internet e, finalmente, com a necessidade de compartilhamento de receita em relação à atividade econômica relacionada à Internet em um mundo onde a desigualdade de renda está crescendo a uma taxa sem precedentes em uma plataforma de Internet e digitalização global. O contexto atual, onde gigantes globais da Internet como Google ou Amazon estão completamente livres para transferir/alocar receitas e custos onde escolherem dentro de seus impérios multinacionais, a fim de minimizar a exposição fiscal, está rapidamente atingindo um ponto crítico onde algum tipo de intervenção é provável. No horizonte de mais longo prazo, a significância da polarização de renda tanto global quanto interna nacional, muito dela tendo alguma ligação com a tecnologia digital e a Internet, em algum ponto precisará de intervenção e reequilíbrio se quisermos evitar agitações sociais.

Em um regime de governança multissetorial, é claro, gigantes da Internet como Google ou Amazon presumivelmente serão parceiros/partes interessadas iguais na determinação de questões de regulação da Internet, tributação e a possível alocação/realocação de benefícios gerais, ou seja, aquelas questões que são de preocupação financeira direta para si mesmas e seus acionistas/proprietários. E estas determinações estarão ocorrendo em contextos políticos onde não há campeões/partes interessadas óbvios representando o amplo interesse público global. Que tal arranjo apoie diretamente os interesses dos EUA e de outros Países Desenvolvidos e os interesses das corporações dominantes da Internet, ou seja, aquelas que fazem lobby mais ativamente em favor do modelo multissetorial, claramente não é um acidente.

Assim como, é claro, os cidadãos dos Países Menos Desenvolvidos, cujos governos carecem do conhecimento e, muitas vezes, dos recursos para atuar como partes interessadas eficazes em processos multissetoriais; cujas corporações nacionais de Internet são subunidades de corporações globais ou muito fracas para serem eficazes em tais ambientes; e cujas organizações da Sociedade Civil foram, em muitos casos, capturadas por meio das bugigangas baratas de viagens internacionais, a lisonja da “participação” em discussões com luminares da Internet, juntamente com as migalhas de benefícios organizacionais localizados; estarão (como com as populações desfavorecidas em Países Desenvolvidos) completamente à mercê daqueles nos Países Desenvolvidos e naquelas pequenas parcelas de seus próprios países que já alcançaram sucesso na esfera global da Internet e têm a ganhar enormemente em prestígio e de outra forma através da dominância dos processos de governança multissetorial.

Michael Gurnstein

Texto original

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