Hayek: Os Intelectuais e o Socialismo

Hayek: Os Intelectuais e o Socialismo

23 maio 2025
Claude Joseph Vernet - Paisagem de montanha com uma tempestade se aproximando - 1775

Claude Joseph Vernet - Paisagem de montanha com uma tempestade se aproximando - 1775

O texto a seguir é o capítulo 12 do livro “Estudos em filosofia, política e economia”, de Friedrich von Hayek, um dos pais do neoliberalismo.

É muito interessante ir à fonte do neoliberalismo, cristalinamente reveladora do que realmente se trata: da montagem de um discurso, uma tentativa de teoria, para conter os malditos esquerdistas. Chega a ser quase ingênua a argumentação e a tentativa de erigir um fundamento teórico daquilo que odeia a teoria. Mas os fins justificam os meios. O mundo das fake news e da perseguição ao saber formal não é de hoje. Está tudo ali.

Segue:

Capítulo 12 - Os intelectuais e o socialismo

Em todos os países democráticos, nos Estados Unidos ainda mais que em outros lugares, prevalece a forte convicção de que a influência dos intelectuais na política é insignificante. Isso sem dúvida é verdade em relação ao poder dos intelectuais de fazer com que suas opiniões momentâneas influenciem decisões, ou ao alcance com que podem direcionar o voto popular em questões nas quais divergem das visões vigentes das massas. No entanto, em períodos um pouco mais longos, eles provavelmente nunca exerceram uma influência tão grande quanto a que exercem hoje nesses países.

À luz da história recente, é curioso que esse poder decisivo dos profissionais intelectuais ainda não seja mais amplamente reconhecido. O desenvolvimento político do mundo ocidental ao longo do último século oferece a demonstração mais clara. O socialismo nunca foi, em lugar algum, originalmente um movimento operário. Longe de ser um remédio óbvio para um mal óbvio que os interesses dessa classe necessariamente exigiriam, trata-se de uma construção de teóricos, derivada de certas tendências do pensamento abstrato com as quais, por muito tempo, apenas os intelectuais estavam familiarizados. E foram necessários esforços prolongados desses intelectuais para que as classes trabalhadoras fossem persuadidas a adotá-lo como programa.

Em cada país que avançou rumo ao socialismo, a fase em que ele se tornou uma influência decisiva na política foi precedida, por muitos anos, por um período em que os ideais socialistas dominavam o pensamento dos intelectuais mais ativos. Na Alemanha, esse estágio foi alcançado no final do século passado; na Inglaterra e na França, por volta da Primeira Guerra Mundial. A um observador superficial, pareceria que os Estados Unidos atingiram essa fase após a Segunda Guerra Mundial e que o fascínio por um sistema econômico planejado e dirigido é hoje tão forte entre os intelectuais americanos quanto já foi entre seus pares alemães ou ingleses. A experiência sugere que, uma vez alcançada essa fase, é apenas questão de tempo até que as visões defendidas pelos intelectuais se tornem a força dominante da política.

O caráter do processo pelo qual as opiniões dos intelectuais influenciam a política do futuro tem, portanto, um interesse que vai muito além do acadêmico. Se desejamos apenas prever ou tentar influenciar o curso dos eventos, trata-se de um fator de importância muito maior do que geralmente se compreende. O que, para o observador contemporâneo, parece ser uma batalha de interesses conflitantes, muitas vezes já foi decidido muito antes, em um embate de ideias restrito a círculos estreitos. Paradoxalmente, porém, em geral são os partidos de esquerda que mais difundiram a crença de que a força numérica dos interesses materiais opostos é que decide questões políticas, embora, na prática, esses mesmos partidos tenham agido de forma consistente e bem-sucedida como se compreendessem a posição-chave dos intelectuais. Seja por estratégia ou impelidos pelas circunstâncias, sempre direcionaram seus principais esforços para conquistar o apoio dessa elite, enquanto os grupos mais conservadores agiram, com a mesma regularidade porém sem sucesso, sob uma visão mais ingênua da democracia de massas, tentando em vão alcançar e persuadir diretamente o eleitor individual.

O termo “intelectuais”, porém, não transmite imediatamente uma imagem fiel da ampla classe a que nos referimos, e o fato de não termos um nome melhor para descrever o que chamamos de “revendedores de ideias de segunda mão” é uma das razões pelas quais seu poder ainda não é bem compreendido. Até mesmo quem usa a palavra “intelectual” principalmente como um insulto reluta em aplicá-la a muitos que exercem, sem dúvida, essa função característica. Ela não corresponde nem ao pensador original nem ao acadêmico ou especialista em um campo específico. O intelectual típico não precisa ser nenhum dos dois: não precisa possuir conhecimento especializado em nada em particular, nem mesmo ser especialmente inteligente, para cumprir seu papel de intermediário na disseminação de ideias. O que o qualifica para essa função é a ampla gama de temas sobre os quais pode discorrer e escrever com facilidade, além de uma posição ou hábitos que o distinguem das demais pessoas que também exercem o poder da palavra escrita ou falada. Seria extenso demais analisar aqui o desenvolvimento dessa classe e a curiosa alegação recentemente feita por um de seus teóricos, de que ela seria a única cujas opiniões não são decididamente influenciadas por seus próprios interesses econômicos. Um dos pontos importantes a serem examinados nessa discussão seria até que ponto o crescimento dessa classe foi estimulado artificialmente pela lei dos direitos autorais.

Não surpreende que o verdadeiro acadêmico, o especialista ou o homem prático frequentemente desprezem o intelectual, relutem em reconhecer seu poder e se ressintam ao descobri-lo. Individualmente, veem os intelectuais como pessoas que não entendem nada em particular com profundidade e cujo julgamento sobre assuntos que eles mesmos dominam não demonstra qualquer sinal de sabedoria especial. Mas seria um erro fatal subestimá-los por essa razão. Mesmo que seu conhecimento seja superficial e sua inteligência limitada, isso não altera o fato de que é o julgamento deles que determina, em grande parte, as visões que a sociedade adotará em um futuro não muito distante. Não é exagero dizer que, uma vez convertida a parte mais ativa dos intelectuais a um conjunto de crenças, o processo pelo qual essas se tornam amplamente aceitas é quase automático e irresistível. Eles são os órgãos que a sociedade moderna desenvolveu para difundir conhecimento e ideias, e são suas convicções e opiniões que funcionam como a peneira pela qual todas as novas concepções devem passar antes de chegar às massas.

É da natureza do trabalho do intelectual que ele precise usar seu próprio conhecimento e convicções em sua tarefa diária. Ele ocupa sua posição porque possui, ou lida diariamente com, conhecimentos que seu empregador geralmente não tem, e suas atividades, portanto, só podem ser dirigidas por outros até certo ponto. E justamente porque os intelectuais são, em sua maioria, intelectualmente honestos, é inevitável que sigam suas próprias convicções sempre que têm autonomia, imprimindo um viés correspondente a tudo que passa por suas mãos. Mesmo quando a direção da política está nas mãos de homens práticos de visões diferentes, sua execução geralmente cabe aos intelectuais, e frequentemente são as decisões sobre detalhes que determinam o efeito final. Isso se ilustra em quase todos os campos da sociedade contemporânea. Jornais sob propriedade “capitalista”, universidades presididas por conselhos “reacionários”, sistemas de radiodifusão controlados por governos conservadores — todos já foram conhecidos por influenciar a opinião pública em direção ao socialismo, pois essa era a convicção de seu pessoal. Isso frequentemente ocorreu não apenas apesar das tentativas dos dirigentes de controlar a opinião e impor princípios ortodoxos, mas talvez até por causa delas.

Claude Joseph Vernet - Uma tempestade na costa do Mediterrâneo, 1767

Claude Joseph Vernet - Uma tempestade na costa do Mediterrâneo, 1767

O efeito dessa filtragem de ideias pelas convicções de uma classe predisposta a certas visões não se limita de forma alguma às massas. Fora de sua área de especialização, o especialista geralmente depende tanto dessa classe quanto é influenciado por sua seleção. O resultado é que, hoje, em grande parte do mundo ocidental, até os opositores mais ferrenhos do socialismo obtêm de fontes socialistas seu conhecimento sobre a maioria dos temas dos quais não têm informação direta. Para muitos dos preconceitos mais gerais do pensamento socialista, a conexão com suas propostas práticas não é imediatamente óbvia, e, por consequência, muitos que se consideram adversários resolutos desse sistema de pensamento tornam-se, na realidade, propagadores eficazes de suas ideias. Quem não conhece o homem prático que, em sua própria área, denuncia o socialismo como “bobagem perniciosa”, mas, ao sair dela, propaga socialismo como qualquer jornalista de esquerda?

Um entendimento adequado das razões que tendem a inclinar tantos intelectuais ao socialismo é, portanto, de extrema importância. O primeiro ponto que aqueles que não compartilham essa tendência devem encarar com franqueza é que as visões dos intelectuais não são determinadas por interesses egoístas ou más intenções, mas principalmente por convicções sinceras e boas intenções. Na verdade, é necessário reconhecer que, em geral, quanto mais um intelectual típico é guiado por boa vontade e inteligência, maior é a probabilidade de ele ser socialista, e que, no plano do debate puramente intelectual, ele geralmente conseguirá construir argumentos mais sólidos do que a maioria de seus opositores dentro de sua classe. Se ainda assim o consideramos equivocado, precisamos reconhecer que pode ser um erro genuíno que leva pessoas bem-intencionadas e inteligentes — ocupantes de posições-chave em nossa sociedade — a difundir ideias que nos parecem uma ameaça à nossa civilização. Nada é mais crucial do que tentar compreender as origens desse erro para que possamos combatê-lo. No entanto, aqueles geralmente vistos como representantes da ordem vigente, que acreditam entender os perigos do socialismo, estão longe de tal compreensão. Tendem a tratar os intelectuais socialistas como meros radicais pretensiosos e nocivos, subestimando sua influência e, com sua atitude geral, acabam por empurrá-los ainda mais para a oposição à ordem estabelecida.

Se quisermos entender essa inclinação peculiar de grande parte dos intelectuais, precisamos esclarecer dois pontos. Primeiro: eles geralmente julgam todas as questões específicas exclusivamente à luz de certas ideias gerais. Segundo: os erros característicos de uma época frequentemente derivam de novas verdades genuínas que ela descobriu, sendo aplicações equivocadas de generalizações que se mostraram válidas em outros campos. A conclusão a que chegaremos, após considerar esses fatos, é que a refutação efetiva de tais erros frequentemente exigirá avanços intelectuais adicionais, muitas vezes em pontos abstratos e que podem parecer distantes das questões práticas.

Talvez a característica mais marcante do intelectual seja julgar novas ideias não por seus méritos específicos, mas pela facilidade com que se encaixam em suas concepções gerais — na imagem do mundo que ele considera moderna ou avançada. É por meio de sua influência sobre ele e de sua escolha de opiniões em questões particulares que o poder das ideias (para o bem e para o mal) cresce em proporção à sua generalidade, abstração e até vagueza. Como ele sabe pouco sobre questões específicas, seu critério deve ser a coerência com suas outras visões e a capacidade de combiná-las em uma imagem coerente do mundo. Essa seleção, entre as inúmeras novas ideias que surgem a todo momento, cria o clima de opinião característico, a Weltanschauung dominante de uma época, que será favorável à aceitação de certas visões e hostil a outras, levando o intelectual a aceitar ou rejeitar conclusões sem um entendimento real dos problemas.

Henry Fuseli - As três bruxas, 1783

Henry Fuseli - As três bruxas, 1783

Em alguns aspectos, o intelectual está mais próximo do filósofo do que de qualquer especialista, e o filósofo, em mais de um sentido, é uma espécie de príncipe entre os intelectuais. Embora sua influência esteja mais distante dos assuntos práticos e seja mais lenta e difícil de rastrear do que a do intelectual comum, ela é do mesmo tipo e, a longo prazo, ainda mais poderosa. É a mesma busca por uma síntese metódica, o mesmo julgamento de visões particulares com base em sua adequação a um sistema geral de pensamento (em vez de seus méritos específicos), a mesma busca por uma visão de mundo consistente que, para ambos, forma a base para aceitar ou rejeitar ideias. Por isso, o filósofo provavelmente exerce maior influência sobre os intelectuais do que qualquer outro acadêmico ou cientista, determinando mais do que ninguém a forma como os intelectuais exercem sua função de “censura” ideológica. A influência popular do especialista científico só começa a rivalizar com a do filósofo quando ele deixa de ser especialista e passa a filosofar sobre o progresso de sua área — geralmente após ser adotado pelos intelectuais por motivos alheios à sua excelência científica.

O “clima de opinião” de qualquer época é, assim, essencialmente um conjunto de preconceitos muito gerais pelos quais o intelectual avalia a importância de novos fatos e opiniões. Esses preconceitos são principalmente aplicações dos aspectos que lhe parecem mais significativos nos avanços científicos — transferências para outros campos do que mais o impressionou no trabalho dos especialistas. Poderíamos listar inúmeras modas intelectuais e slogans que, ao longo de duas ou três gerações, dominaram sucessivamente o pensamento dos intelectuais. Seja a “abordagem histórica”, a teoria da evolução, o determinismo do século XIX, a crença na influência predominante do ambiente sobre a hereditariedade, a teoria da relatividade ou a crença no poder do inconsciente — cada uma dessas concepções gerais foi usada como critério para testar inovações em diferentes áreas. Parece que quanto menos específicas ou precisas (ou menos compreendidas) são essas ideias, maior é sua influência. Às vezes, é uma impressão vaga, raramente articulada, que exerce um efeito profundo. Crenças como a de que o controle deliberado ou a organização consciente são sempre superiores a processos espontâneos não dirigidos por uma mente humana em assuntos sociais, ou que qualquer ordem baseada em um plano pré-estabelecido é melhor do que uma formada pelo equilíbrio de forças opostas, afetaram profundamente o desenvolvimento político.

[…]

Isso, porém, não é tudo. As forças que influenciam o recrutamento para as fileiras dos intelectuais atuam na mesma direção e ajudam a explicar por que tantos dos mais talentosos entre eles inclinam-se ao socialismo. Claro, há tantas divergências entre intelectuais quanto em outros grupos, mas parece verdade que, em geral, são os mais ativos, inteligentes e originais que mais frequentemente aderem ao socialismo, enquanto seus opositores costumam ser de calibre inferior. Isso é particularmente evidente nos estágios iniciais da infiltração das ideias socialistas. Posteriormente, mesmo que fora dos círculos intelectuais ainda seja um ato de coragem professar convicções socialistas, a pressão da opinião entre os intelectuais será tão forte que resistir exige mais força e independência de espírito do que aderir ao que seus pares consideram visões modernas. Por exemplo, quem conhece diversos corpos docentes universitários (e, sob essa ótica, a maioria dos professores deve ser classificada como intelectuais, não como especialistas) não pode ignorar que os professores mais brilhantes e bem-sucedidos hoje têm grande probabilidade de ser socialistas, enquanto os que mantêm visões políticas conservadoras são frequentemente medíocres. Isso, por si só, é um fator importante que leva a geração mais jovem ao campo socialista.

Os socialistas, é claro, verão nisso uma prova de que as pessoas mais inteligentes hoje inevitavelmente aderem ao socialismo. Mas essa não é a explicação necessária ou mesmo mais plausível. A principal razão para esse fenômeno provavelmente reside no fato de que, para o homem excepcionalmente talentoso que aceita a ordem social vigente, há inúmeras outras vias de influência e poder disponíveis, enquanto, para o descontente e insatisfeito, a carreira intelectual é o caminho tanto para influência quanto para poder que promete contribuir mais para a realização de seus ideais.

Claude Joseph Vernet - Os quatro tempos do dia: Meio-dia - 1757

Claude Joseph Vernet - Os quatro tempos do dia: Meio-dia - 1757

Mais ainda: o indivíduo conservador de primeira classe geralmente escolherá o trabalho intelectual (e o sacrifício material que essa escolha acarreta) apenas se o fizer por paixão. Assim, é mais provável que ele se torne um especialista do que um intelectual no sentido estrito da palavra. Já para os mais radicais, a atividade intelectual é frequentemente um meio, não um fim — um caminho para exatamente o tipo de influência ampla que o intelectual profissional exerce. Portanto, provavelmente não é que as pessoas mais inteligentes sejam socialistas, mas que uma proporção muito maior de socialistas entre as mentes brilhantes dedica-se a atividades intelectuais que, na sociedade moderna, lhes conferem influência decisiva sobre a opinião pública.

A seleção dos intelectuais também está ligada ao interesse predominante que demonstram por ideias gerais e abstratas. Especulações sobre uma possível reconstrução total da sociedade atraem mais o paladar intelectual do que considerações práticas e de curto prazo daqueles que buscam melhorias graduais na ordem vigente. Em particular, o pensamento socialista conquista os jovens por seu caráter visionário; a coragem de se entregar ao pensamento utópico é, nesse aspecto, uma fonte de força para os socialistas que o liberalismo tradicional lamentavelmente não possui. Essa diferença favorece o socialismo não apenas porque a especulação sobre princípios gerais permite o exercício da imaginação daqueles pouco familiarizados com os fatos da vida contemporânea, mas também porque satisfaz um desejo legítimo de compreender a base racional de qualquer ordem social e oferece espaço para o ímpeto construtivo que o liberalismo, após suas grandes vitórias, deixou sem vazão. O intelectual, por sua própria disposição, não se interessa por detalhes técnicos ou dificuldades práticas. O que o atrai são as visões amplas, a compreensão aparentemente lógica da ordem social como um todo que um sistema planejado promete.

O fato de as especulações dos socialistas satisfazerem melhor os anseios intelectuais dos intelectuais mostrou-se fatal para a influência da tradição liberal. Uma vez que as demandas básicas dos programas liberais pareciam atendidas, os pensadores liberais de antigo tipo voltaram-se a problemas pontuais e passaram a negligenciar o desenvolvimento da filosofia geral do liberalismo, que, por consequência, deixou de ser uma questão viva, capaz de estimular reflexões amplas. Assim, por mais de meio século, apenas os socialistas ofereceram algo próximo a um programa explícito de desenvolvimento social, uma visão do futuro que almejavam e um conjunto de princípios gerais para orientar decisões em questões específicas. Mesmo que, se estiver correto meu argumento, seus ideais padeçam de contradições inerentes, e qualquer tentativa de implementá-los produza algo radicalmente distinto de suas expectativas, isso não altera o fato de que seu programa de mudança foi o único que, em tempos recentes, exerceu influência real sobre o desenvolvimento das instituições sociais. Por terem se tornado detentores da única filosofia geral explícita de política social defendida por um grande grupo — o único sistema ou teoria que suscita novos problemas e abre novos horizontes —, lograram capturar a imaginação dos intelectuais.

O rumo efetivo da sociedade nesse período foi determinado não por um embate de ideais conflitantes, mas pelo contraste entre a realidade vigente e aquele único ideal de uma sociedade futura possível que os socialistas, sozinhos, apresentaram ao público.

Pouquíssimos dos outros programas oferecidos constituíam alternativas genuínas. A maioria era mero compromisso ou soluções intermediárias entre formas mais radicais de socialismo e a ordem existente. Bastava que alguém defendesse uma proposta suficientemente extrema para que quase qualquer ideia socialista parecesse razoável às mentes “ponderadas”, predispostas a crer que a verdade sempre reside no meio-termo entre os extremos. Parecia existir apenas uma direção possível para o movimento, restando apenas discutir sua velocidade e amplitude.

A relevância do apelo especial que o socialismo exerce sobre os intelectuais, derivado de seu caráter especulativo, tornará mais nítida se contrastarmos a posição do teórico socialista com a de seu equivalente liberal, no sentido antigo do termo. Essa comparação também nos conduzirá à lição que podemos extrair ao compreender as forças intelectuais que minam os alicerces de uma sociedade livre.

Paradoxalmente, um dos principais entraves que privam o pensador liberal de influência popular está intimamente ligado ao fato de que, até a ascensão prática do socialismo, ele dispunha de mais oportunidades para influenciar diretamente decisões políticas imediatas. Consequentemente, não apenas evitava mergulhar na especulação de longo prazo — trunfo dos socialistas —, como era desencorajado a fazê-lo, pois esse esforço poderia reduzir o bem imediato que poderia realizar.

Todo poder de influência que possui sobre decisões práticas deve-se a seu prestígio junto aos representantes da ordem vigente — prestígio que arriscaria perder caso se dedicasse ao tipo de especulação que atrai os intelectuais e que, através deles, poderia moldar desenvolvimentos futuros. Para manter relevância junto aos poderes estabelecidos, precisa ser “prático”, “sensato” e “realista”. Enquanto se concentra em questões imediatas, é recompensado com influência, sucesso material e popularidade entre aqueles que, até certo ponto, compartilham sua visão geral. Porém, esses homens têm pouca consideração por reflexões sobre princípios gerais, que moldam o clima intelectual. Na verdade, se o liberal se entrega seriamente a tais especulações de longo prazo, tende a ganhar a fama de “inconsequente” ou até de “meio socialista”, por recusar-se a equiparar a ordem existente ao sistema livre que almeja.

Se, apesar disso, persiste na especulação geral, logo descobre que é arriscado associar-se estreitamente a quem parece compartilhar suas convicções, sendo rapidamente levado ao isolamento. De fato, há poucas tarefas mais ingratas atualmente do que desenvolver os fundamentos filosóficos necessários para o avanço de uma sociedade livre. Como quem a empreende precisa aceitar grande parte da estrutura vigente, aos intelectuais mais inclinados à abstração, parecerá mero apologista tímido do status quo; aos homens práticos, um teórico irrealista. Não é suficientemente radical para os que habitam um mundo onde “as ideias coexistem com facilidade”, e excessivamente radical para os que veem apenas como “as coisas colidem brutalmente no espaço”. Se aproveita o apoio dos homens práticos, desacredita-se perante os intelectuais de quem depende para difundir suas ideias. Simultaneamente, precisa evitar qualquer resquício de exagero ou radicalismo. Enquanto teóricos socialistas jamais perdem credibilidade entre os pares, mesmo com propostas absurdas, o liberal tradicional condena-se com uma sugestão impraticável. Aos intelectuais, porém, ainda parecerá pouco ousado, e suas propostas de mudança social parecerão limitadas ante os devaneios de uma imaginação sem freios.

Numa sociedade onde as bases da liberdade já foram conquistadas e os avanços subsequentes exigem ajustes detalhados, o programa liberal carece do brilho sedutor de uma nova invenção. Apreciar suas propostas exige conhecimento da dinâmica social atual — algo que o intelectual médio não possui. O debate sobre tais melhorias ocorre em nível mais pragmático que o dos programas revolucionários, assumindo um caráter pouco atraente para o intelectual e atraindo elementos com os quais ele se antagoniza. Os mais familiarizados com o funcionamento da sociedade atual geralmente defendem aspectos particulares dela, por vezes indefensáveis em termos gerais. Diferentemente do revolucionário, que busca uma ordem totalmente nova e naturalmente recorre ao teórico, os defensores da ordem vigente julgam compreendê-la melhor que qualquer teórico, rejeitando o que lhes parece estranho ou abstrato.

Claude-Joseph-Vernet - Naufrágio em Mares Tempestuosos ('Tempête'), 1773

Claude-Joseph-Vernet - Naufrágio em Mares Tempestuosos (‘Tempête’), 1773

A dificuldade de obter apoio genuíno e desinteressado para uma política sistemática em prol da liberdade não é nova. Em passagem que me veio à mente diversas vezes após a recepção de um livro meu recente, Lord Acton descreveu há tempos como “em todas as eras, os verdadeiros amigos da liberdade foram raros, e seus triunfos devem-se a minorias que prevaleceram aliando-se a grupos com objetivos distintos — aliança sempre perigosa e por vezes desastrosa, ao dar aos opositores motivos justos de oposição…” Recentemente, um eminente economista americano queixou-se, em tom similar, de que a principal tarefa dos que creem nos princípios do sistema capitalista é frequentemente defendê-lo contra os próprios capitalistas — algo que os grandes economistas liberais, de Adam Smith em diante, sempre souberam.

O obstáculo mais sério que separa os homens práticos (que têm genuíno apreço pela liberdade) das forças que, no campo das ideias, determinam o curso dos eventos é sua profunda desconfiança da especulação teórica e sua tendência à ortodoxia. Isso cria uma barreira quase intransponível entre eles e os intelectuais dedicados à mesma causa, cujo apoio é indispensável para seu triunfo. Embora essa tendência seja natural entre os que defendem um sistema por seu êxito prático (e para quem sua justificação intelectual é irrelevante), é fatal à sua sobrevivência, pois priva-o do apoio crucial. Qualquer ortodoxia, qualquer pretensão de que um sistema de ideias é definitivo e deve ser aceito sem questionamento, antagoniza por princípio todos os intelectuais, independentemente de suas visões particulares. Um sistema que julga homens pela adesão irrestrita a opiniões fixas, por sua “moderação” ou conformidade a visões aprovadas, priva-se do apoio sem o qual nenhum conjunto de ideias mantém influência na sociedade moderna. A capacidade de criticar visões estabelecidas, explorar novas perspectivas e experimentar conceitos originais constitui o ar que o intelectual respira. Uma causa que não oferece espaço para isso não terá seu apoio e está condenada em qualquer sociedade que, como a nossa, depende de seus serviços.

É possível que uma sociedade livre, tal como a conhecemos, carregue em si as forças de sua própria destruição; que, uma vez alcançada, a liberdade passe a ser dada como certa e deixe de ser valorizada; e que o livre desenvolvimento de ideias, essência de uma sociedade livre, acabe por corroer os alicerces dos quais ela depende. Não há dúvida de que, em países como os Estados Unidos, o ideal de liberdade hoje tem menos apelo real para os jovens do que em nações onde aprenderam o que significa perdê-la. Por outro lado, há todos os indícios de que, na Alemanha e em outros lugares, para os jovens que nunca conheceram uma sociedade livre, a construção dessa sociedade pode se tornar uma tarefa tão estimulante e fascinante quanto qualquer projeto socialista surgido nos últimos cem anos. Embora muitos visitantes tenham constatado esse fato extraordinário, ele segue surpreendente: ao debater princípios de uma sociedade liberal com estudantes alemães, encontra-se uma audiência mais receptiva e até entusiástica do que se poderia esperar em qualquer democracia ocidental. Na Grã-Bretanha, também já surge entre os jovens um novo interesse pelos princípios do verdadeiro liberalismo — algo inexistente há alguns anos.

Isso significa que a liberdade só é valorizada quando perdida? Que o mundo precisará atravessar, em toda parte, uma fase sombria de totalitarismo socialista antes que as forças da liberdade readquiram vigor? Talvez. Mas espero que não. No entanto, enquanto aqueles que, a longo prazo, moldam a opinião pública continuarem seduzidos pelos ideais socialistas, a tendência persistirá. Para evitar tal cenário, precisamos oferecer um novo programa liberal que capture a imaginação. É preciso transformar a construção de uma sociedade livre novamente em uma aventura intelectual, um ato de coragem. Falta-nos uma Utopia liberal: um programa que não se limite a defender o status quo nem se reduza a um socialismo diluído, mas um radicalismo verdadeiramente liberal, que não poupe as suscetibilidades dos poderosos (incluindo sindicatos), que não seja excessivamente pragmático e que transcenda o que hoje parece politicamente viável. Precisamos de líderes intelectuais dispostos a resistir às seduções do poder e a trabalhar por um ideal, por mais remotas que pareçam suas chances de realização imediata. Homens que se mantenham fiéis aos princípios e lutem por sua plena concretização, ainda que distante. Os compromissos práticos devem ficar a cargo dos políticos.

Livre comércio e liberdade de oportunidade ainda podem inflamar a imaginação de muitos, mas uma mera “liberdade comercial razoável” ou um simples “afrouxamento de controles” não inspira entusiasmo nem merece respeito intelectual.

A principal lição que o verdadeiro liberal deve extrair do sucesso dos socialistas é que foi sua coragem utópica que conquistou o apoio dos intelectuais e, assim, influenciou a opinião pública — tornando possível, dia após dia, o que até pouco tempo parecia inatingível. Aqueles que se restringiram ao “praticável”, dentro do cenário vigente, viram até mesmo isso tornar-se politicamente inviável, devido a mudanças em uma opinião pública que não se esforçaram para orientar.

Henry Fuseli - Aqui eu e a tristeza nos sentamos, 1783

Henry Fuseli - Aqui eu e a tristeza nos sentamos, 1783

Se não conseguirmos revitalizar os fundamentos filosóficos de uma sociedade livre como questão intelectual urgente, e transformar sua implementação em um desafio à criatividade e à imaginação de nossas mentes mais brilhantes, o futuro da liberdade será sombrio. Mas se recuperarmos a crença no poder das ideias — marca do liberalismo em seu auge —, a batalha não estará perdida. A revitalização intelectual do liberalismo já está em curso em muitas partes do mundo. Resta saber: chegará a tempo?

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