A história política do Ciberlibertarianismo
Como documentado por Turner, Winner, Barbrook e Cameron, o ciberlibertarianismo emergiu como uma força política a partir da conjunção entre turbulência política e desenvolvimento tecnológico, especialmente na cultura do Vale do Silício e da região da Baía de São Francisco no final dos anos 1960. As características gerais da “contracultura” presentes no ciberlibertarianismo, personificadas em figuras como Stewart Brand e Timothy Leary, podem parecer óbvias. Elas fazem parte de uma política geral de orientação esquerdista que tende a apoiar a democracia e os direitos civis, já que pelo menos parte do ativismo dos anos 1960 colocava esses valores em seu cerne.

Brand aponta o dedo. No documentário ‘We Are As Gods (Somos Como Deuses)’, Brand surge como um dos nomes mais emblemáticos da era tecnológica – sempre presente nos círculos de poder exatamente quando a história está sendo escrita
No entanto, essa aparência é fundamental para a política antidemocrática que veio a caracterizar o ciberlibertarianismo. Nem Brand nem Leary tinham muita afinidade com a democracia, especialmente no que diz respeito à regulação e fiscalização democrática da atividade econômica; nenhum dos dois dedicou muita energia a atividades democráticas essenciais, como a proteção do direito de voto e outros direitos civis. Brand, em particular, estava muito mais focado no crescimento econômico do que em valores democráticos.
Além disso, o desenvolvimento tecnológico do ciberlibertarianismo forma uma parceria estranha com o radicalismo aparentemente de esquerda da contracultura dos anos 1960. Afinal, o próprio Vale do Silício era um dos principais núcleos do “complexo industrial-militar” que até o presidente republicano Dwight Eisenhower condenou publicamente. A Universidade de Stanford foi uma das sedes acadêmicas desse tipo de atividade, frequentemente descrita junto com o MIT como o coração intelectual do complexo (Leslie, 1993). O Vale do Silício recebeu esse nome devido aos circuitos de transistores desenvolvidos em Stanford, que também foi o berço de muitas das principais empresas de tecnologia digital, incluindo Google, Instagram, Yahoo, Fairchild Semiconductor, HP e Cisco.
Stanford também foi um importante centro de promoção da eugenia nos EUA, e uma das figuras fundadoras do Vale do Silício — que comandou o laboratório que “colocou o silício no Vale do Silício” (Moffitt, 2018) — era um racista particularmente fervoroso: William Shockley. Seria mesquinho insistir que as visões de um único fundador definem tudo o que veio depois. No entanto, a conexão entre o pensamento supremacista branco e fascista no libertarianismo do Vale do Silício (ver Capítulo 7) e a promoção de teorias racistas sobre QI na cultura digital deveria fazer qualquer pensador imparcial refletir. Isso se torna ainda mais significativo quando se observa a mudança no Vale do Silício - antes voltado ao desenvolvimento e venda de tecnologia militar, agora insistindo que seus produtos não só são cultural e politicamente aceitáveis, mas essenciais para o funcionamento das democracias.
Também é crucial para a análise do ciberlibertarianismo a história política da indústria da computação. Isso inclui trabalhos de jornalistas (Levy, 1985; Markoff, 2005; Frank, 1997; Levine, 2018b; Curtis, 2011) e acadêmicos (Roszak [1969] 1995, 1986a, [1986b] 1994; Gitlin, 1993; Edwards, 1997; Turner, 2006a). Juntos, eles detalham a conexão entre política, militarismo e indústria no desenvolvimento dos computadores e da cultura, forçando-nos a reconsiderar algumas narrativas populares sobre os anos 1960. É consenso que os EUA passaram por uma significativa guinada à esquerda nos anos 1960, em parte como reação à natureza burocrática de organizações industriais, militares e governamentais predominantes nos anos 1950. Essa transformação incluiu tanto as conhecidas iniciativas de direitos civis (focadas em raça e gênero) quanto os movimentos antiguerra.

Timothy Leary, a família e a banda em turnê de palestras; Universidade Estadual de Nova York em Buffalo (1969). Foto do Dr. Dennis Bogdan usando uma câmera Nikon Photomic FTn (35mm, SLR), CC BY-SA 3.0, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=32777562
No mundo ocidental, revoluções comportamentais no mesmo período foram marcadas por mudanças na moda, nos costumes sexuais, na música popular e no uso de drogas. Essas mudanças foram personificadas por eventos como o “Verão do Amor” de 1967, figuras como Timothy Leary e a banda Grateful Dead, slogans como “ligue, sintonize, caia fora” e o desenvolvimento de programas de autorrealização, como o Erhard Seminars Training e o movimento de comunas rurais.

Uma comuna do movimento back to the land (de volta para a terra), composta por jovens brancos de classe média, com elevado nível de educação, na grande maioria.
Gitlin, Roszak e Turner demonstram que, apesar das percepções populares, esse conjunto de forças abrange pelo menos dois movimentos que percorrem todo o espectro político. É comum associar os anos 1960 à ideia de uma “Nova Esquerda”, mas esses críticos nos convidam a examinar cuidadosamente os movimentos contraculturais para ver se o rótulo é adequado. Surge uma divisão natural: algumas figuras (como o próprio Gitlin, Robert F. Kennedy, Martin Luther King Jr., Malcolm X, os Students for a Democratic Society e o Revolutionary News Service) alinharam-se claramente com a política de esquerda, enquanto outras (como muitos dos expoentes mais famosos da cultura dos anos 1960, como Leary, Ken Kesey, Stewart Brand, os Merry Pranksters, o Grateful Dead, Jerry Rubin e os be-ins) defendiam uma política pró-empresarial, anticomunista e antiesquerdista, cuja face pública focava no estilo de vida em vez de na política real. Em vez de lutar por uma sociedade mais igualitária, retiravam-se para comunas; em vez de trabalhar pela emancipação das mulheres, interpretavam o “amor livre” como inerentemente libertador; em vez de defender direitos civis para minorias, ouviam Motown.

Summer of Love, 1967 (Verão do Amor, 1967)
Obviamente, havia muita interação entre os dois lados, e muitos participantes comuns da contracultura certamente transitavam entre ambos com facilidade. Frank e outros mostraram que a indústria desempenhou um papel profundo na geração da cultura, tanto por meio de empresas de entretenimento quanto na criação de formas culturais pela publicidade e branding em Madison Avenue. Isso sugere que as energias revolucionárias dos radicais dos anos 1960 foram rapidamente canalizadas para um radicalismo de estilo de vida, que pode parecer o oposto da política proposta.
Turner chama a parte da contracultura não explicitamente comprometida com a política de esquerda de “Novos Comunalistas”:
“Enquanto seus pares organizavam partidos políticos e protestavam contra a Guerra do Vietnã, esse grupo… afastou-se da ação política e voltou-se para a tecnologia e a transformação da consciência como as principais fontes de mudança social. Se a América mainstream havia se tornado uma cultura de conflito, com revoltas internas e guerra no exterior, o mundo das comunas seria um de harmonia. Se o Estado americano implantava sistemas de armas massivos para destruir povos distantes, os Novos Comunalistas usariam tecnologias em pequena escala — de machados e enxadas a amplificadores, luzes estroboscópicas, projetores de slides e LSD — para unir as pessoas e permitir que experimentassem sua humanidade comum.” (2006, p. 4)

Werner Erhard num de seus seminários: A proposta do treinamento era transformar a forma como se vive, de modo que as situações que a pessoa tentava mudar ou apenas suportava se resolvessem naturalmente, no próprio fluxo da vida.
Para ilustrar a orientação e influência dos Novos Comunalistas, Turner destaca a vida e o trabalho de Stewart Brand, editor do Whole Earth Catalog, cuja presença em tantos momentos cruciais da computação e da contracultura é notável. Associado (mas não “membro”) dos Merry Pranksters — o grupo contracultural antipolítico por excelência —, Brand teve um papel fundamental na promoção do movimento de retorno à terra, do pequeno agricultor e da alternativa neorural à ação política direta. Já no final dos anos 1960, Brand se distanciava da política de esquerda e expressava simpatia discreta pela direita.

Uma das aventuras mais emblemáticas dos anos 1960 foi a viagem de dois meses pelos EUA que os Merry Pranksters fizeram em seu ônibus, entre junho e agosto de 1964. Esse périplo simbolizou o espírito de busca e expansão da mente da década e marcou o início da era psicodélica dos anos 60.
Brand aparece repetidamente no desenvolvimento da visão utópica da computação devido a várias conexões diretas entre o Whole Earth Catalog e a comunidade emergente de computadores pessoais. Em 1968, ele produziu e projetou os aspectos audiovisuais do chamado “Mother of All Demos” em São Francisco, onde o pioneiro da computação Douglas Engelbart “lançou raios com ambas as mãos” ao demonstrar um sistema integrado de hardware e software. Esse evento ajudou a galvanizar as partes do Vale focadas em computação, consolidando sua autoimagem como revolucionários quase políticos.

Bill English e sua equipe se preparando para a demonstração de 1968, com o voluntário Stewart Brand manuseando a câmera.

Douglas Engelbart. A demonstração é considerada uma das mais importantes da história da tecnologia, revelando inovações que moldaram a computação moderna. Foi lá que o público viu, pela primeira vez, um mouse de computador, interface gráfica, janelas multitarefa, hipertexto, processamento de texto, videoconferência e muitas outras revoluções.
A combinação da revolução dos computadores pessoais com o movimento dos Novos Comunalistas remodelou efetivamente a paisagem cultural, tornando-a hoje quase invisível e impensável. Essa é a visão de que “autoridade centralizada” e “burocracia” são emblemas de poder concentrado, enquanto sistemas “distribuídos” e “não hierárquicos” se opõem a esse poder. Como Turner explica, uma das principais fontes da ideia de redes horizontais e distribuídas não vem da esquerda política, mas sim
“das táticas sociais e retóricas usadas pelos engenheiros de defesa da Segunda Guerra Mundial e da Guerra Fria para organizar e legitimar seu próprio trabalho. Assim como Norbert Wiener e os cientistas do Rad Lab, Stewart Brand fez carreira cruzando fronteiras disciplinares e profissionais. Como aqueles que projetaram e financiaram os laboratórios de pesquisa bélica da Segunda Guerra, Brand criou uma série de fóruns de rede — alguns presenciais, como a Hacker’s Conference, outros digitais, como o WELL, ou impressos, como o Whole Earth Catalog. Assim como o Rad Lab, esses fóruns permitiam que membros de várias comunidades se encontrassem, trocassem informações e desenvolvessem novas ferramentas retóricas. Como seus predecessores da Segunda Guerra, eles também facilitavam a construção e disseminação de protótipos tecnossociais. Às vezes, como no caso do Catalog ou do WELL, as produções da Whole Earth modelavam os tipos de relações entre tecnologia, informação, o indivíduo e a comunidade preferidos pelos membros da rede.” (2006, pp. 249–50)

Stewart Brand troca ideias com o pessoal na Whole Earth Truck Store, em Palo Alto.
No cerne dessas mudanças está uma série profunda de desenvolvimentos na tecnologia computacional. As primeiras críticas aos computadores como ferramentas da tecnocracia focavam na máquina como um aparato institucional — muitas vezes exigindo salas inteiras ou até alas de prédios apenas para abrigar o hardware. O jornalista John Markoff destaca a importância de lembrar que foi necessária muita visão, engenhosidade e perseverança para criar computadores projetados para indivíduos e que eventualmente se tornaram móveis. A transição da computação institucional para a pessoal coincide precisamente com a mudança da visão contracultural do computador como um instrumento de poder desumanizante para o computador como uma ferramenta de expansão do poder humano.
A crítica à computação institucionalizada baseava-se em parte na representação precisa do poder computacional como fisicamente separado dos corpos humanos. Havia uma forte sensação de que os computadores eram coletores e organizadores remotos de dados sobre nós, a serviço de instituições poderosas que podiam nos manipular por meio do conhecimento obtido. A visão contracultural da computação, promovida por Stewart Brand, Douglas Engelbart, Steve Jobs, Bill Gates e outros, era que os indivíduos deveriam ter o poder da computação em suas mãos. É importante notar que esses empreendedores tinham um interesse financeiro pessoal nessa ideia. Mas essa visão, que invertia completamente a dinâmica de poder, conta apenas uma pequena parte da história.
Ou seja, dar poder computacional aos indivíduos não o tira das instituições; de muitas formas, as revoluções tecnológicas associadas à computação pessoal dependiam do poder institucional ampliado. Isso é mais evidente no rápido surgimento de hackers autodeclarados rebeldes — indivíduos que Levy (2010) chamou de “heróis da revolução da computação” — que se tornaram algumas das figuras mais ricas e poderosas das indústrias líderes mundiais.
Estar fisicamente separado das máquinas computacionais não nos isola de seus efeitos mais perniciosos. A localização do poder computacional tem sido variável: às vezes mediada por terminais “burros” que se comunicam com máquinas centrais poderosas, e outras vezes colocando grande parte desse poder em dispositivos do usuário. Os smartphones atuais possuem enorme capacidade de processamento, mas ao mesmo tempo dependem da comunicação com redes e servidores poderosos. Eles transmitem dados extremamente ricos sobre nós de volta a instituições que os processam para controle político — tanto no sentido eleitoral e partidário quanto em um sentido mais amplo de controle social.
Em outras palavras, a revolução da computação pessoal foi sucedida por uma revolução da computação global, composta por infraestruturas burocráticas e centralizadas. No entanto, essas infraestruturas se ocultam ao colocar dispositivos de coleta e processamento de dados diretamente nas mãos dos usuários.
Trecho do livro Cyberlibertarianism: The Right-Wing Politics of Digital Technology, de David Golumbia